O impeachment de Fernando Collor
Em setembro de 1992 produziu-se neste país um dos mais surpreendentes desfechos para uma crise política que tudo indicava se encaminharia, como de costume, ou para mais uma ruptura da institucionalidade, ou, menos dramaticamente, para a manutenção no poder, até seu termo legal, de um governo em decomposição, sem credibilidade e, portanto, impotente diante de dificuldades que já se interpretavam como igualmente crônicas e insolúveis.
Quando, em 29 de setembro daquele já distante ano de 1992, sem golpe, sem interferência militar, os brasileiros acompanharam via tv e rádio, ao vivo, a deposição legal do presidente Fernando Collor de Mello, em sessão extraordinária do Congresso Nacional, encerrava-se de modo inusitado o primeiro governo civil e diretamente eleito após o Regime Militar, ao mesmo tempo em que se abria uma nova era para a política brasileira, da qual ainda hoje mal podemos visualizar e caracterizar os traços principais.
Como foi possível? Como, em pouco mais de dois anos, se viu um país mobilizar-se pela eleição de um candidato e dele livrar-se sem qualquer alteração nas regras do jogo democrático?
A ascensão do "caçador de marajás"
Não é possível se compreender a queda de Collor e sua deposição sem fazer referência ao modo com que ascendeu meteoricamente ao poder. Prefeito nomeado de Maceió, nos anos finais do regime militar, deputado federal pela legenda do Partido Democrático Social (PDS), Fernando Collor de Mello descende de rica e poderosa família de políticos e empresários, sendo filho de Arnon de Mello, governador e senador por Alagoas nas décadas de 1950 a 1980, e neto de Lindolfo Collor, primeiro ministro do Trabalho do Governo Provisório instalado após a Revolução de 1930.
Eleito em 1986 governador de Alagoas pela legenda do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), o jovem político implantou desde a posse um estilo de governo marcado pela polêmica e pela produção de fatos de interesse jornalístico que lhe permitiram, em pouco tempo, tornar-se conhecido e admirado em todo o território nacional, a despeito da diminuta importância política de seu estado. Meses após o início de seu mandato em Alagoas, Collor já era matéria de capa nos principais jornais e revistas de circulação nacional - e em breve também na tv - encarnando a personagem do "caçador de marajás", cuja bandeira política principal era o saneamento e a moralização da administração pública.
Rompido - espetacularmente - com o PMDB por força da transigência com que este partido, majoritário na Assembléia Nacional Constituinte, cedera às pressões do então presidente José Sarney para a fixação na Carta de 1988 do mandato de cinco anos para a presidência da República, Collor lançou-se candidato ao cargo na primeira eleição direta, pós-regime militar, pela legenda do obscuro Partido da Juventude (PJ), logo rebatizado de Partido da Reconstrução Nacional (PRN).
Ao iniciar-se a campanha de 1989, o candidato do PRN coligou-se a outras legendas desconhecidas, utilizando habilmente, porém, os programas eleitorais destas agremiações para tornar famosa em todo o país a sua jovial e decidida figura de combatente da moralidade. Assumindo a liderança das pesquisas de intenção de voto em abril daquele ano, Collor transformou-se num fenômeno eleitoral e venceu a disputa, derrotando no segundo turno o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luís Inácio Lula da Silva.
Cem dias de aventura
Ao assumir, o "caçador de marajás" pôs em funcionamento um ousado e polêmico plano de estabilização, o "Plano Collor I", voltado ao combate imediato de uma inflação que atingia então a cifra de 80% ao mês. A despeito do impacto do Plano - que entre outras medidas, confiscou a poupança dos brasileiros e limitou os saques aos bancos - Collor obteve grande apoio junto à sociedade e ao Congresso Nacional para implementar sua política econômica, que envolvia ainda toda uma agenda de reforma administrativa e privatizações.
O entusiasmo inicial com que se recebeu tanto o vigoroso presidente - flagrado quase que diariamente, nas primeiras semanas depois da posse, em atividades esportivas e espetaculares - quanto o seu programa de governo - calcado num receituário neoliberal que, a rigor, vinha sendo divulgado sistematicamente pela mídia há pelo menos um ano - refluiu em pouco tempo, uma vez que não apenas a inflação não se deixou abater, como a profunda e desorganizada intervenção do governo jogou a economia na recessão e confundiu a administração.
O começo do fim da Era Collor, porém, deu-se rapidamente, justamente na marca dos primeiros cem dias de governo, quando surgiu a primeira denúncia de tráfico de influências envolvendo Paulo César Farias, o PC, tesoureiro da campanha de Collor à presidência.
O resgate da aposta collorida
A denúncia inicial comprovou ser apenas a ponta de um iceberg que foi se tornando paulatinamente visível, semana a semana, numa série praticamente ininterrupta de revelações que não apenas minaram por completo a já de origem frágil base de apoio parlamentar do presidente, mas acima de tudo corroeram a imagem de campeão da moralidade que conduzira Collor ao poder.
O ápice desse processo de corrosão se deu em maio de 1992 - pouco mais de dois anos após a posse -, quando o próprio irmão do presidente, Pedro Collor, deu entrevista à revista Veja acusando PC de comandar um esquema de grande corrupção, com a conivência do primeiro mandatário da República.
Seguiu-se então um processo de investigação em que o Congresso, de um lado, através de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a chamada CPI do PC, e de outro, de modo tão ou mais decisivo, a mídia, mobilizaram a opinião pública nacional em prol da apuração completa dos fatos e responsabilidades.
Comprovado o esquema de corrupção e o envolvimento do presidente, a CPI apresentou seu relatório ao país e entidades da sociedade civil - lideradas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) - deram entrada no pedido de impeachment do presidente, o que levou a Câmara dos Deputados a afastar Collor do poder, em 29 de setembro.
Três meses depois, antes de ser julgado e impedido definitivamente pelo Senado Federal, Collor renunciou. Mesmo assim teve seus direitos políticos cassados por oito anos. O vice-presidente Itamar Franco assumiu em definitivo o cargo e completou o mandato restante.
Lições e desdobramentos
Inocentado pelo Supremo Tribunal Federal da acusação de corrupção passiva, em 1994, Collor teve de aguardar, porém, o prazo previsto para readquirir o direito a concorrer a um cargo público.
Hoje ele disputa, novamente, o governo de Alagoas, e segue gozando de considerável prestígio político.
A despeito da insatisfação de grande parte da população brasileira, por considerar que, de certo modo, o ex-presidente não foi punido pelos atos que lhe custaram o mandato, em 1992, ainda assim - ou por isso mesmo - seu nome continua marcado para a posteridade e associado a uma grande decepção e a uma cultura política rejeitada pelos grandes formadores de opinião (exemplo disso se deu nas recentes tentativas de associação de seu nome ao de um dos atuais candidatos à presidência, e na pronta recusa deste em aceitar o apoio de Collor).
O que não se pode duvidar, contudo, é que desde então é cada vez maior a certeza de que a qualquer momento um ocupante de cargo público pode ser chamado a prestar contas à sociedade por qualquer eventual desvio de conduta. Seja ele um simples vereador, do mais humilde e remoto município, ou Sua Excelência, o Presidente do Brasil.
Fernando Lattman-Weltman
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Este artigo resume, em linhas bem gerais, os resultados da pesquisa realizada sobre a ascensão e queda de Fernando Collor publicada em: LATTMAN-WELTMAN, Fernando, CARNEIRO, José Alan Dias & RAMOS, Plínio de Abreu, A Imprensa faz e Desfaz um Presidente, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1994.
Fonte: FGV CPDOC
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